quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012


DOS VINHOS QUE BEBO

Bebo nos quadros, fotos e imagens
Bêbados de vida flagrada na beleza
Banal do nada: em infinitas viagens,
Bestiais passageiros flutuam na leveza

Inimaginável do Ser-sempre que lê:
Ler porque não sou “oito em um”,
Mas porque, ao contrário de um ser,
Sou “cem milhões de brasileiros” num.

E esta imagem minha, assim fragmentada,
Dispersa-se nos livros dos vivos
E dos mortos, na tela por outrem pintada.

Daí porque, insistentemente digo:
Minha vida resume a empreitada:
Ler os outros para encontrar comigo.

Gil Guimarães

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012



DEUS E EU NO (GRANDE) SERTÃO...

     Eu sou a síntese complexa do meu próprio “eu enfermo” e finito e da sede de saúde absoluta que tenho, Deus infinito. Desta relação entre mim e Deus procede toda calma e desespero.

(Gil Guimarães)


DANÇA COM URUBU

            - Que bom que você chegou, senta aí. Estava mesmo pensando em você, precisava de alguém capaz de ouvir palavras no atacado e no varejo, ritmo de bêbado, violão de três cordas... Veja você, qual a relevância de uma xícara de café, quais as implicações? Nenhuma, não é? Qual o pecado de se tomar uma xícara de café? Certamente não há pecado nisso. Porém se o café te prejudicas, se faz mal a tua saúde, se teus médicos te recomendam que não tomes, continuarás a tomar café? Digamos que ainda assim, tu não consigas deixar de tomá-lo, digamos que agora já não é porque o médico sugeriu, mas porque tu mesmo criaste consciência do perigo e decidiu abandoná-lo, entretanto tu não consegues, embora muito te esforces. Imagine que a tua insistência no café já coloca em risco não só a tua saúde, mas a da tua família inteira. O teu ato de tomar café compromete já todos os teus amigos, não obstante, tu não tens forças para te livrares do café. Decerto detestarás o café, ele será teu fantasma, teu algoz. De que vale toda a tua inteligência, toda a tua sensibilidade para as artes diversas, e para que te aproveitará a tua gigantesca erudição se fores derrotado pelo maldito líquido? Acaso não te seria preferível ser um camponês inculto e alheio aos mistérios do mundo, todavia que possuísse domínio sobre teus impulsos? Talvez seja esta a maior virtude do ser; e sua ausência seu ocaso. Compreendes o que digo? Há dias em nossa vida que são tão insípidos como beber água sem vontade. Observe aquele pássaro sobre a árvore, que te parece? Dir-me-ia que é lindo? Espere um pouco; olhe aquele rato sujo. Que me dirias dele? Não, não. Não me digas nada sobre nenhum dos dois porque eu sei: Sei que não há diferença alguma entre os dois. Veja o pássaro, como respira; o rato também respira. Conheces os raciocínios complexos dos pássaros? Certamente que não, já que ignoras a beleza macabra dos ratos. Para por fim à questão te pergunto: Porventura o princípio que deu vida a um não foi o mesmo que a deu ao outro? Não há mistério nos dois? Não são os dois tão desconhecidos como nós? Pois então, rato, pássaro, gente, tudo igual. Desejo ser um rato agora, só para saber como é ser rato. Pois quanto a ser homem eu já sei: É querer ser rato de quando em vez, e depois ser pássaro a alçar vôos no vazio leve do ar. Tu nunca pensaste em ser rato, pássaro? Há dias em que tudo se confunde, se dispersa e se junta de novo dentro de nós. Será que os pássaros são felizes? E quanto aos ratos, será que são indivíduos tristes? Ontem, na festa, as pessoas pareciam felizes, a música eletrônica, o ritmo quente mexia com todos; eu, porém, estava sentado sobre a última janela do salão a olhar um átomo preto que flutuava na imensidão azul do céu: Era um urubu que de tão alto era um pontinho preto no ar. Olhei-o minutos a fio, meu olhar o perseguia como um tira de filme de ação persegue o bandido. Aquela ave negra parecia desfilar para mim, exibia-se com graça e habilidade como se soubesse que eu a observava: Quedas livres, retomadas repentinas de vôo, uma beleza! Aquele urubu talvez não soubesse, mas aquele fora o seu dia, sua hora de estrela. Quem sabe? E se eu resolvesse contratá-lo para trabalhar comigo... Mas será que ele queria trabalhar? Sobretudo comigo? Não cheguei a falar-lhe, ele estava muito alto, eu tão baixo. Como saberei? Nunca saberei... E isso é a vida meu amigo. Todavia, o que importa, se amei o urubu? Uma garota convidou-me para dançar. Como, porém, poderia eu dançar com aquela garota depois do urubu? Queria mesmo era dançar com aquele urubu, entende?


Gil Guimarães.